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A Jihad no Sahel: a cooperação e o terrorismo em cheque

 Por Nicholas Torsani


A eclosão do terrorismo no Sahel tem suas origens na Guerra Civil Argelina de 1992. Com um golpe militar durante as eleições que garantiriam muito provavelmente portentosa maioria ao partido FIS no congresso, os partidos islâmicos se inflamaram. Logo após, a Frente de Salvação Islâmica (ou FIS, em francês) foi banida e assim, em conjunto com outros grupos armados islâmicos insurgentes, causou a morte de 200 mil argelinos e o desaparecimento de mais 15 mil. Apesar de tamanha brutalidade, ainda foi denotado o papel isento da França, visando manter laços de proximidade com o governo então vigente. Desse modo é que surgem diversas milícias armadas na região do Saara e do Sahel, que vão se consolidar justamente no período de expansão da al-Qaeda e do Talibã, formando uma frente terrorista no Continente Africano. Inclusive, um dos mais importantes grupos terroristas, o Grupo Salafista para a Pregação e o Combate (GSPC), que posteriormente se torna a al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQIM, em inglês), é uma dissidência de um partido salafista menor da Argélia, que também concorria ao pleito presidencial de 1991, o Grupo Armado Islâmico (GIA, em francês). Destarte se observa  nos anos posteriores um movimento desses grupos ao sul da Argélia, penetrando nas cidades periféricas e frágeis de Mali, Níger, Mauritânia e Burkina Faso, que seus estados já fragmentados pouco conseguem guarnecer (Britannica)(Al Jazeera, 2010). 

A partir da expansão desses grupos na Argélia, em fins de 2005 essas organizações passam a penetrar em território mauritânio, realizando uma série de ataques às instituições estatais e desestabilizando o país, o qual passou por dois golpes de estado no mesmo período. Com a transformação do GSPC para al-Qaeda no Magreb Islâmico em 2007, o país virou o centro das atividades desse grupo. Uma consequência disso foi uma tentativa, ainda que falha, de assassinato ao então presidente em fevereiro de 2011. No entanto, doravante o recebimento de ajuda externa advinda especialmente do Comando Militar Estadunidense para a África (AFRICOM) a Mauritânia conseguiu desenvolver programas exitosos de contraterrorismo, estruturando seu exército com maiores gastos em policiamento e ocupando efetivamente as cidades, o que permitiu que essas fossem de facto integradas à lógica estatal mauritânia (africanews, 2020)(Combating Terrorism Center, 2018).


Mapa mostra alvos dos terroristas e a estratégia estatal (em inglês). Fonte: ISS Africa


O conflito no Mali, por sua vez, começou com uma rebelião tuaregue no norte do país em 2012, em contraposição ao golpe militar praticado no país, e espalhou terroristas por toda a região, incluindo os países vizinhos Níger e Burkina Faso. A partir daí , os grupos jihadistas Jamaat Nusrat al-Islam wal-Muslimin (JNIM), al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQIM, em inglês), Ansar Dine, Movimento para a Unidade e a Jihad na África Ocidental (MUJAO), e Ansar al-Sharia se firmaram na comarca, se financiando com o tráfico de pessoas, drogas e  cigarros, além do sequestro de jornalistas e personalidades ocidentais. Todos estes supracitados têm base salafista ou wahhabista, consequentemente implicando na proximidade dos mesmos para com o fundamentalismo islâmico do Oriente Médio. Inclusive, isso resultou mais recentemente na adesão de vários soldados dos grupos que se dissolveram ao Estado Islâmico da África Ocidental (antigo Boko Haram). Esse player, por sinal, também influencia diretamente as políticas internas de quatro outros países da região, Camarões, Nigéria, Níger e Chade (Jamestown, 2020)(BBC, 2013).

Além disso, se sobressaem os rebeldes tuaregues que levantam uma insurgência separatista no norte do país, igualmente em 2012. Chamado de Azawad, o declarado estado independente foi uma tentativa do povo, por meio dos grupos MNLA (Movimento Nacional de Libertação de Azawad) e FLNA (Frente de Libertação Nacional de Azawad), de se libertar do governo de Bamako, aproveitando a instabilidade governamental causada pelo golpe de estado. O povo tuaregue é uma etnia berbere e nômade que habita historicamente o Saara, e detinha papel pivotal no comércio Euro-Africano antes das grandes navegações, visto que intermediava o transporte de bens, escravos e migrantes pelo deserto. Atualmente habitam a faixa territorial correspondente ao sudeste argelino, ao Fezã líbio, ao nordeste de Mali e de Burkina Faso, e ao centro-norte do Níger, todos prejudicados igualmente pela separação territorial indevida dos colonos europeus. Com anos de negligência estatal e a tensão gerada pela separação da sociedade em castas, que existem inclusive entre os tuaregues, rebeliões continuam sendo frequentes desde o século XX, em especial nos países centrais Mali e Níger. 

Dessarte, diversas forças externas passaram a apoiar o governo centrado em Bamako, em especial países vizinhos tementes da difusão do conflito e dos grupos terroristas, resultando em um deslocamento de tropas conjuntas africanas, primordialmente sob a bandeira do ECOWAS (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental), que estabeleceu a MISMA (Missão Internacional Africana de Apoio ao Mali). Isso garantiu, em conjunto com tropas destinadas pelo comando estadunidense e pela França, ao menos um recuo das tropas insurgentes em direção ao norte, estabilizando em parte o sul. Posteriormente, as Nações Unidas também destinaram forças estabilizadoras e criaram assentamentos para refugiados e deslocados internos. Apesar disso, a violência e a brutalidade continuou; os terroristas conseguiram tomar cidades importantes no norte do país, incluindo Gao, Timbuktu (um centro histórico dos tuaregues e berço da primeira universidade do mundo) e Kidal. Lá instituíram a Sharia (Lei Islâmica), estabelecendo na prática grandes califados responsáveis pela opressão dos povos locais, pela destruição da infraestrutura, escolas, e estabelecimentos comerciais, pelo abuso infantil e estupros em massa. Além disso, ainda foram mortos mais de 90 peacekeepers enviados pelas Nações Unidas somente nos 4 primeiros anos da missão em Mali (África 21, 2013)(Human Rights Watch, 2013).


Mapa do conflito em Mali atualmente (em inglês). Fonte: Wikimedia


Devido à proximidade dos países vizinhos e à abundância de recursos minerais na região, em especial no norte do Níger, os grupos armados não tiveram dificuldade em se alastrar pela região, precipuamente nos também frágeis Burkina Faso e Níger. No caso de Ouagadougou, a instabilidade se difundiu com a deposição em 2014 do ex-ditador Blaise Compaoré, que já sofria com protestos em massa desde 2011. Isso deu início a uma derrocada de eventos desestabilizadores no país, incluindo tentativas de golpes de estado, diversos ataques terroristas (destinados particularmente à população cristã), polarização de diversos grupos nacionais distintos e um enfraquecimento substancial do exército nacional. Geralmente subsidiados pelos grandes proxys terroristas globais, os grupos atuantes acabam por ser em essência frutos das múltiplas divergências étnicas entre as tribos internas, como no caso do grupo burquino Ansar-oul Islam, que utiliza a relação histórica de subserviência dos Rimaibé perante os Fulani como pretexto para suas ações. Os ataques são principalmente direcionados aos cristãos pela sua tradicional proximidade com o estado burquino, que tem um histórico de proteção às minorias nacionais. Para mais, a igreja católica sempre funcionou como mediadora de crises no país, reverberando sua proeminência social e política internamente (The Conversation, 2019)(Le Monde Afrique, 2017).  


Alvos dos terroristas em Burkina Faso em 2017 (em francês). Fonte: UN OCHA 


No que tange o Níger, o que se observa é um caos propiciado justamente pela instabilidade em seus vizinhos, que para além dos casos de Mali e Burkina Faso, ainda é influenciado pelo Boko Haram nigeriano ao sul do país. Ademais, Niamey ainda é afetada pela presença de grupos armados na fronteira com a Líbia, visto a derrocada de uma guerra civil pós-2011 no país, com o sucessivo assassinato de Gaddafi. Somente entre os meses de novembro de 2018 e março de 2019 foram registradas 452 mortes decorrentes dos múltiplos conflitos armados que passaram a assolar o país (CSIS, 2019). Também foram denotados ataques às minas de urânio de Arlit, considerada a capital do urânio do Saara, e uma invasão desses grupos à cidade de Agadez, uma das mais importantes do país. Compreendendo 7% das reservas globais do minério e servindo de base para a exploração de distintas empresas europeias, sobretudo a estatal francesa Areva, o país é um alvo recorrente e importante para os terroristas. Cabe notar o papel do urânio na região, que por mais que corresponda a cerca de ⅓ das exportações totais de Niamey, foi ofuscado pela ascensão nos preços do petróleo, reduzindo comparativamente a paridade de compra do país. Isso impactou significativamente a sociedade dessas cidades altamente dependentes do urânio, como é o caso de Arlit e Agadez (Business Insider, 2013)(BBC, 2013).


Número de mortes na região em 2019 (em inglês). Fonte: BBC


Como qualquer conflito envolvendo segurança internacional e interesses econômicos, a crise de segurança o Sahel não poderia carecer do envolvimento de atores externos, sobretudo potências mundiais. Isso é traduzido por meio do papel dos Estados Unidos, com seu comando militar denominado AFRICOM e da França, através de sua Operação Barkhane, iniciada com os conflitos no Mali em 2012 (CSIS, 2019). Para além destes, ainda há a operação de duas organizações securitárias na região, a Força-Tarefa Conjunta Multinacional da bacia do Lago Chade e o G5-Sahel, atuando em conjunto com as operações estrangeiras e das Nações Unidas. A primeira delas foi fundada ainda na década de 1990 para conter a  revolução tuaregue que tomou conta dos países do Sahel Ocidental à época, combinando assim uma formação conjunta entre os países do Chade, Níger, Nigéria, Camarões e Benin para a proteção regional. Atualmente se mobilizam em especial acerca da presença do Estado Islâmico (ex-Boko Haram) ao entorno do Lago Chade, mas ainda carecem de muita coordenação e integração do suporte econômico e militar, muito por conta da disparidade entre os países (International Crisis Group, 2020). O G5-Sahel por sua vez foi fundado em 2014 entre os países de Chade, Mauritânia, Mali, Níger e Burkina Faso visando a integração militar e a proteção conjunta da região (NATO ACT, 2019). 

Símbolos das organizações G5-Sahel e Força-Tarefa Conjunta Multinacional, respectivamente. Fonte: Wikimedia


A França tem ação capital na estabilização regional, se pautando especialmente em sua política de proximidade para com suas ex-colônias, algo que é mantido desde a época das independências. Sua presença econômica regional é tão forte que influencia as decisões políticas mesmo em países desvinculados há décadas de seu domínio, prática essa que enaltece o termo Françafrique, égide de atuação política, econômica e social de Paris no continente africano (Carta Internacional, 2014). Com isso, obtém um histórico de intervenções regionais e de ajuda e suporte militar em suas ex-colônias, como no caso da invasão líbia ao Chade na década de 1980, guerra essa que ficou conhecida como Toyota War, e teve papel capital da França para a vitória de N'Djamena. Nessa crise também se prontificaram a ajudar, e tanto nos governos Sarkozy e Hollande quanto no governo Macron enviaram tropas e ajuda de reconhecimento de campo para estabilizar a região. Como epicentros mobilizadores identificam-se em especial os recursos minerais extraídos pelos franceses, sobretudo o urânio, mas também o ouro, o cobre, ferro e manganês. Defendem com fervor que se não combaterem o terrorismo na comarca, este poderá se proliferar às regiões vizinhas, desestabilizando toda a África e, porventura, chegar às margens do Mediterrâneo, algo que seria catastrófico para a segurança europeia (euronews, 2020)(euronews, 2019).

O outro ator global mais proeminente na região, os Estados Unidos, tiveram grande papel, por meio da AFRICOM, na estabilização da Mauritânia no início da década de 2010. No entanto, a partir do governo Trump, o que se observa é uma mudança nos rumos estadunidenses, marcados precipuamente pelo shift em sua política externa, mais autocentrada e nacionalista. Desse modo, declararam já nos fins de 2019, na ocasião de um aumento substancial na violência e nos atentados no Sahel, que os países do G5-Sahel deveriam fazer mais para estabilizar a região: sinal que se afastariam da luta por lá. Entre 2017 e 2018 forneceram mais de 5 bilhões de dólares em ajuda militar para a estabilização da região, mas viram-na ser insuficiente, culminando no afastamento dos estadunidenses do local (Le Figaro, 2019).


Mapa sintetizando a geopolítica do Sahel e do Saara (em inglês). Fonte: The Sahel Consortium


Para compreender a crise em solo africano, é necessário que em primeira instância se sobreleve o papel da colonização por lá, visto que a separação indevida dos territórios fragmentou as divisões étnicas locais. Posteriormente, em conjunto com a exploração abusiva dos recursos naturais, os europeus ainda segmentaram as classes étnicas dentro dessas pátrias forjadas, intensificando a distinção racial e instigando o conflito entre elas. Para mais, a descolonização foi feita de forma a perpetuar a influência dos países europeus sobre os sistemas políticos, sociais e econômicos dessas pátrias, o que reverbera até hoje na próxima relação entre ditadores e elites locais e os governantes franceses. No tocante ao Sahel, se sobressai ainda a falta de infraestrutura básica e o escasso acesso aos recursos básicos como água potável, saneamento básico e até mesmo comida, o que agrava muito a condição de vida das famílias que derivam da agricultura sua subsistência. Isso é exacerbado pela desertificação iminente, que empurra cada vez mais essas populações às fronteiras, impedindo que se assentem por muito tempo em uma localidade específica, e assim estejam mais suscetíveis aos ataques terroristas e à violência local. 

Portanto, é basilar que não cessem a presença de tropas de peacekeeping e o suporte aéreo e terrestre para evitar que o conflito se alastre para o resto do continente e assim impacte firmemente o sistema de segurança global. Ainda há de se sobrelevar o papel da Nigéria nesta região, que é denominada pelo geopolítico Saul Cohen como um shatterbelt, isto é, um território global marcado pela atomização cultural, étnica, religiosa, política e econômica, resultando em uma zona propícia ao aparecimento de conflitos. Desse modo, uma vez que Abuja se porta como uma potência regional, inclusive sendo caracterizada pelo geopolítico como uma das duas potências do continente, é de suma relevância que esta se engaje cada vez mais no combate ao terrorismo regional, em conjunto com as forças externas. Assim, se torna substancial que a já fragmentada Nigéria, visto suas presenciadas divergências étnicas internas, ao menos isole e contenha a insurgência no nordeste no país. Uma vez que esses grupos penetrem mais ao sul, ou seja, atinjam o centro político e econômico nigeriano, toda a segurança regional seria afetada, resultando em uma leva torrencial de violência e instabilidade por todo o Golfo da Guiné. Para além da brutalidade social e política, isso também afetaria gravemente os sistemas econômicos locais, baseados firmemente na extração de hidrocarbonetos e que compreendem as maiores reservas desse insumo no continente. Outrossim, com a queda de uma das potências africanas, o caos político, econômico e social se proliferaria com maior facilidade às outras comarcas continentais, requerendo maiores gastos e esforços das grandes forças mundiais posteriormente. Essencialmente, somente por meio de uma cooperação econômica e militar e do alinhamento dos esforços e das políticas externas é que a crise poderá ser contornada.


Texto revisado por Pedro Lopes


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