Por Nicholas Torsani
Foto da hidrelétrica em construção. Fonte: ISS Africa
A Grande Represa Renascentista, projeto portentoso orquestrado pelo governo da Etiópia, visa entregar eletricidade a mais de 60% da população do país, que não tem acesso à energia elétrica. Seu planejamento teve início no fim da década de 2000, se tornando público somente em março de 2011, quando também foi anunciado o contrato com a empresa italiana Webuild SpA (antiga Salini Impregilo SpA) para sua construção, de quase 5 bilhões de dólares.
Polo de intensa discussão regional nos últimos meses, mas que remonta a decisões tomadas anos atrás, a “nova” hidrelétrica etíope é um dos grandes entraves geopolíticos da atualidade. Compreendendo desde méritos como a segurança energética e alimentar dos países da Bacia do Rio Nilo até a própria mediação de atores estrangeiros, a disputa se estende por diversos campos da política internacional, prometendo gerar extensos debates por mais um bom tempo.
Mapa do Rio Nilo e suas origens no Nilo Branco e Nilo Azul (em inglês). Fonte: Amigo Pai
O Histórico
Em 1959 foi assinado um tratado entre o Sudão e o Egito (à época chamado República Árabe Unida, por sua união política com a Síria) pelos direitos de utilização das águas do Nilo. Esse acordo dava direito quase total ao acesso e uso de todo o fluxo do maior rio africano, gerando grande revolta entre os outros oito Estados da Bacia do Nilo, com destaque para os etíopes, retentores de 83% de todo o fluxo. Os demais países, em especial a Etiópia, nunca aceitaram efetivamente o acordo, mas no caso da capital Addis Abeba, se beneficiou de uma cláusula específica: a limitação do uso de água pelos sudaneses. Isso acabou por dar muito jogo político para o país de língua amárica negociar os termos da nova usina com os dois outros players principais, o Egito e o Sudão, reivindicando sua parcela de uso dessa água.
O motivo principal da construção da usina está centrado no fato de 90% da população etíope ainda depender do uso tradicional de biomassa para obter energia, geralmente por meio da queima de madeira, o que impacta negativamente as reservas florestais e a biodiversidade do país. É um passo importantíssimo, caso queira se tornar uma potência regional, que ao menos garanta o acesso universalizado à luz, o que certamente elevaria o patamar nacional perante às nações vizinhas. Nos anos 2000, por exemplo, mesmo com diversas usinas hidrelétricas - de menor escala que a em questão, é claro - o país sofreu com diversos apagões, haja vista o crescimento urbano exponencial e os problemas graves na estruturação das redes de geração e transmissão elétricas. Extremamente dependente de vários fatores como secas, os usos industriais, civis e do agronegócio e causas de redução na produção, como o assoreamento e a sedimentação nas represas, a Etiópia se torna muito vulnerável às mutações internas, requerendo maiores excedentes para sustentar a demanda.
Assim, em 2011, em meio à crise egípcia durante a Primavera Árabe, Addis Abeba iniciou a construção da barreira, que somente amargou as relações entre as duas nações desde então. Doravante, diversos eventos suspeitos começaram a acontecer, desde a aproximação e o envio de tropas à Eritreia, país historicamente conflituoso para com os etíopes, até mesmo a suspeita morte de Simegnew Bekele, engenheiro responsável pela construção, atraindo olhares externos ao conflito.
O que está em jogo?
Mapa que mostra a localização da barragem e a bacia do rio Nilo. Fonte: Stratfor
Diversos pontos podem ser listados como problemáticas do conflito, dentre eles, os que mais se destacam são os da segurança alimentar e energética, essenciais para qualquer manutenção e desenvolvimento sociais, e mais críticos ainda se tratando de países africanos. É de suma importância também salientar que o Nilo tem dois principais afluentes, o Nilo Branco e o Nilo Azul (como evidenciados no primeiro mapa). O Nilo Azul, que se origina no lago etíope Tana, é responsável por mais de 83% do curso total do rio, dando ainda mais importância à questão da barragem, podendo impactar firmemente nos ambientes produtivos e sociais do Sudão e do Egito, países altamente dependentes desta água.
Além disso, com a nova usina hidrelétrica, a Etiópia terá como prover acesso à energia elétrica renovável e relativamente limpa a mais de 85 milhões de pessoas sem acesso pleno ao recurso, segundo dados oficiais de 2012. Mais que uma disputa geopolítica, a construção da barragem simboliza um novo momentum dos etíopes, que denotaram um crescimento médio do PIB de 9,9% nos últimos 10 anos computados, segundo o Banco Mundial. Além disso, ainda poderão exportar o excedente produtivo dessa energia, visto que só a nova hidrelétrica corresponde a 144% do consumo anual no país, evidenciando a possibilidade de venderem cerca de 2000 MW anualmente aos países vizinhos, com destaque aos sudaneses, altamente prejudicados energeticamente após a emancipação da parte sul do país em 2011.
O desejo de Addis Abeba é o de encher a represa em um prazo de 5 a 7 anos, se pautando nas fortes desvantagens de preencherem em mais tempo, haja vista sua crescente demanda interna e necessidade de recuperar os altos investimentos. Justo ou não, é um meio dos etíopes garantirem sua segurança energética e alimentar, para além de poderem subsidiar os altos custos da construção da barragem, totalmente financiada pelo governo local.
Para o Sudão os impactos ainda são incertos, e fazem com que o já fragilizado governo local aja com cautela, visto que é possível obter resultados positivos e negativos da barragem. Por um lado, a represa ajudaria muito na questão das enchentes locais, resultantes da massiva correnteza obtida nos meses chuvosos do ano, ajudando na produção agrícola local e permitindo um maior controle e excedentes. Além disso, a construção ajudará na questão energética de Cartum, que pouco produz após a independência de seu vizinho do sul, que compreende 80% das reservas de petróleo do então Sudão, possibilitando uma mudança na perspectiva econômica a partir de maiores exportações do setor agropecuário. Ainda assim, impactos negativos também são esperados com relação a esse setor, com enfoque no empobrecimento das terras a partir da redução no fluxo de água do Nilo Azul.
No que tange o Egito, civilização fundada às margens “divinas” do rio, a dependência sobre a água nilense é ainda maior, chegando a sustentar 95% de sua população com base nela. Além disso, cabe sobrelevar o papel da hidrelétrica de Assuã, que apesar de gerar 5% do consumo total de energia egípcia, tem papel significativo em reter as águas para a irrigação das margens do rio, contribuindo massivamente para a produtividade agrícola do país. O grande problema da construção da Grande Represa Renascentista recai justamente sobre o influxo de água nesta barragem e potencialmente seus impactos no Delta do Nilo, região de maior concentração populacional do Egito e que seria gravemente afetado a depender do tempo de preenchimento da represa etíope. Para isso, Cairo já estuda estratégias alternativas de redução de danos na sua segurança alimentar local, como o bombeamento de águas subterrâneas.
A Repercussão
Mesmo com as preocupações diversas sentidas pelos governos sudanês e egípcio, as perspectivas regionais são positivas. A exportação de energia ao vizinho Djibuti é um exemplo disso, que possibilitará a diversificação da planta energética do pequeno - mas altamente estratégico - país do Chifre da África. Além disso, o governo da Arábia Saudita tem grandes expectativas com relação ao aumento da produção de bens agrícolas ao entorno do rio, graças à barragem, já se atentando para os próximos capítulos da questão. O Sudão, por sua vez, nesse jogo de poder e influência, acaba tendo o papel de um estado-balança, representando o equilíbrio e as dúvidas acerca deste projeto no mínimo ambicioso, e fazendo com que qualquer movimento dele seja crucial para a determinação do que será decretado.
Os EUA, por sinal, anunciaram que vão cortar a ajuda provida à Etiópia, devido às negociações conturbadas com Cartum e Cairo. Atuando desde 2011 como um estado mediador entre as partes envolvidas no conflito, recentemente Washington foi acusada pelos etíopes de partido na disputa, optando por apoiar o Egito. Isso vem sendo mais presenciado no Governo Trump, que passou a ser mais incisivo nas negociações e a cobrar uma solução mais rapidamente, o que a Etiópia já garantiu que não vai acontecer se os termos que estão em pauta na agenda, entre eles o atraso no preenchimento da barragem, continuarem a ser discutidos. Protestos populares se tornam cada vez mais frequentes no país de língua amárica, levando igualmente a um posicionamento mais firme dos etíopes no caso.
Quais as perspectivas?
As perspectivas são extremamente voláteis e incertas, mas se pautam sobre alguns cenários possíveis, como apontado pela Al Jazeera. Caso os etíopes decidirem por preencher a barragem, em 21 anos, a perda do curso d’água seria de cerca de 5%, reduzindo em apenas 2,5% a capacidade produtiva agrícola. Em um quadro em que a Etiópia enchesse a represa em 10 anos, os impactos seriam uma redução de 14% no defluxo e de 18% na força produtiva. Em uma conjuntura na qual o açude seja preenchido em 5 anos, os impactos chegariam a uma redução de 50% na produção total, e mais de 36% do fluxo de água. O cenário mais catastrófico é se caso o dique seja completado em 3 anos, o que reduziria em mais de ⅔, ou 66%, a capacidade total de produção agrícola egípcia.
Não obstante, a discussão tende a resultar num desacordo permanente entre as partes, o que provavelmente levará a uma escalada das tensões ao menos temporária na região, especialmente considerando o crescimento substancial da Etiópia e a dependência do Cairo sobre as margens “divinas”. Ademais, ainda vale reforçar que, uma vez preenchida a barragem e conquistada força política e econômica por Addis Abeba, a tendência é que mais hidrelétricas sejam construídas no percurso do rio, visando maior integridade nacional e aumento dos excedentes produtivos, o que enfraqueceria ainda mais os egípcios.
Buscar técnicas de plantio menos dependentes na água e outras alternativas para o arroz e o algodão - ambas plantas de elevado consumo - já são uma realidade no país que herda as tradições milenares e os diversos patrimônios culturais da região. Além disso, tratando de suas seguranças alimentares e energéticas estarem em perigo, é substancial que o Egito se preocupe com sua expansão populacional, a partir de um planejamento para as próximas gerações; e com suas exportações que deverão ser cada vez maiores para subsidiar a importação de alimentos e de água.
Portanto, é possível colocar o mote da questão da Grande Represa Renascentista como um caso evidente do jogo político regional, envolvendo desde as básicas preocupações de sobrevivência estatal e segurança, às complicações geográficas e de política externa. Assim, a “grande renascença” etíope avança para além do cerne de uma simples barragem, se tornando o possível símbolo de uma mudança no polo de poder do nordeste africano.
Texto revisado por Daniella Peixoto Pereira
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