Por Bianca Guimarães Vizzotto
Forças de segurança nacional. Luc Gnago | Reuters
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), promulgada em 10 de dezembro de 1948 na Assembleia Geral das Nações Unidas, invoca um padrão de atuação entre Estados e entidades; o qual, em primeiro lugar, estabelece a igualdade, a liberdade, os direitos e a dignidade como elementos inerentes a todos os seres humanos. Todos os 193 países signatários do documento se comprometem, portanto, com a garantia e defesa dos direitos humanos em seus territórios nacionais, como previsto na escritura. Mas o que de fato acontece do lado de dentro das fronteiras?
Os terrores que os assolam
Marcado por um período de distúrbios internos promovidos por caçadas aos extremistas religiosos ligados à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico, Burkina Faso se destacou no cenário internacional por sua peculiar maneira de investigar suspeitas de envolvimento com os grupos. Apuradas pela Human Rights Watch (HRW) em julho deste ano, uma série de execuções arbitrárias em massa na cidade de Djibo, localizada ao norte do país, trouxeram à luz um problema ainda mais profundo do que o temor jihadista: a insegurança doméstica, promovida pelo próprio aparato.
De acordo com o Artigo 5 da DUDH – a qual o país é signatário – nenhum ser humano deve ser submetido a condições degradantes, desumanas e à tortura de qualquer natureza. No entanto, esses preceitos aparentam ser flexíveis frente à violência exercida pelas forças de segurança nacional burquinenses, que se utilizam de toda e qualquer artimanha para conseguirem supostas informações dos aprisionados.
O que se segue são exibições explícitas da capacidade de mutilação das forças nacionais. Corpos encontrados por toda a região de Djibo em valas comuns, campos abertos e na beira de estradas demonstram sinais de execução a sangue frio – majoritariamente de homens da etnia Fulani (ou Peuhl). Ao que tudo indica, a situação tem sido uma realidade na região desde novembro de 2019 causando terror na população local, impedindo-os até mesmo de sepultarem familiares e conhecidos.
Os antecedentes
O início do conflito burquinense com os grupos jihadistas foi inaugurado por meio do primeiro ataque sofrido pelo país em sua capital Ouagadougou, no ano de 2016. Orquestrado pela Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQMI), o atentado levou à perda de 30 pessoas no local e iniciou uma corrente de ocupação que se mantém até os dias atuais e só se expandiu desde então. Desse modo, outras entidades como o Estado Islâmico no Grande Saara (EIGS) e Ansaroul Islam começaram a exercer sua influência, principalmente ao norte do país, consequente ao estopim proporcionado pela AQMI.
Dessa forma, as execuções realizadas por forças estatais relatadas são tidas como um conjunto de operações contraterrorismo e têm se revelado como preferência de modus operandi desde o começo das ofensivas. A concentração de suspeitas recai sobre o povo nômade Fulani devido suas crenças religiosas – o islã – e seu afastamento da sociedade burquinense. Se torna importante apontar que a desestabilização causada pela ação dos grupos armados abalou a estrutura historicamente harmônica entre as diferentes religiões do país, o que acaba se tornando um ciclo vicioso e uma ótima oportunidade para recrutamento de jovens fulani.
Repercussões e respostas
O relatório divulgado pela HRW, além de explicitar as atrocidades cometidas por autoridades em Burkina Faso, ganha uma nova luz internacionalmente por meio da repreensão generalizada e de pedidos oficiais de explicação acerca da situação do país. A delegação da União Europeia em Burkina Faso se manifestou contrária às execuções e fez um apelo para que esses casos sejam apurados, reafirmando seu apoio à luta antiterrorista do país.
Ademais, em nota oficial, o Departamento de Estado dos Estados Unidos expressou sua profunda preocupação com as violações aos direitos humanos no Sahel e repreendeu os abusos de autoridade das forças nacionais. O país, que também é signatário da DUDH, intimou o G5 do Sahel – instituição que visa garantir a segurança, desenvolvimento e promover a paz regionais – a agir de modo a investigar e apurar as acusações. Caso contrário, a parceria interestatal estaria comprometida, reafirmando seu compromisso com o cumprimento do conteúdo da Declaração.
Corinne Dufka, Diretora da Human Rights Watch no Sahel, questionou a atuação passiva do governo burquinense e os chamou a atuar por meio de investigações independentes e imparciais acerca dos 180 corpos encontrados em valas comuns, dentre outras acusações explicitadas no relatório. Ainda, a diretora afirma que, ao escolherem não tratar e resolver a situação de forma eficiente, o governo escolhe perpetuar o medo dos residentes e o terror causado pelo abuso de autoridade daqueles que deveriam promover a segurança.
Em resposta à diretora, o Ministro da Defesa, Moumina Cheriff Sy, afirmou o comprometimento do país em apurar as alegações feitas no relatório de acordo com os preceitos dos direitos humanos. Cheriff Sy ainda tentou sugerir a hipóteses de que a situação poderia muito bem ter sido causada por jihadistas com armamentos e uniformes militares roubados; adicionado que pode existir uma dificuldade da população em distinguir entre quais são os grupos armados extremistas e as forças de segurança nacional.
A afirmação do Ministro por si só possui nuances problemáticas e resgata a noção de terror e insegurança causada pelas execuções extrajudiciais na cidade. Dessa forma, é possível refletir: se, para uma população, a linha entre reconhecer um órgão estatal de segurança e um grupo extremista armado é tão tênue, talvez ela já não exista mais.
Perspectivas
Não restam dúvidas acerca dos impactos imediatos que as violações dos direitos humanos exploradas anteriormente apresentam, cenas perturbadoras tomam conta da realidade e do cotidiano da população, transformando vidas e deteriorando a segurança. A clara perseguição à etnia Fulani se tornou a causa e a consequência do ciclo vicioso presente na realidade do grupo. Marcado pela violência e pelo isolamento realizado pelas forças armadas; jovens reprimidos, movidos pela raiva e pela falta de recursos, se juntam a grupos armados.
É preocupante a frequência com a qual isso se repete diariamente em cidades como Djibo, em que moradores temem por suas vidas e pela de seus entes queridos. Os relatos apontam o sangue frio desses agentes, que atuam realizando desde execuções rápidas e escondidas, até o desmembramento de corpos, espalhando-os pela região. Além disso, corpos frequentemente são encontrados com suas mãos amarradas, vendados e com testas baleadas. Sinais claros de tortura, apresentados de maneiras diferentes, mas sempre explícitas.
O cenário atual de Burkina Faso se mostra cada dia mais frágil e à beira de um colapso. Com isso em mente, o relatório exibido pela HRW recomenda a atuação rápida e pontual por parte das autoridades em apurar o conteúdo explicitado no documento, afastando comandantes das forças de segurança de seus cargos. Ademais, é desejado que investigações forenses sejam realizadas por órgãos especializados e independentes, garantindo assim, a imparcialidade.
Ainda, o comprometimento com a Declaração dos Direitos Humanos, assinada pelo país, deve ser o principal guia de ações se tratando de operações de segurança. A série de violações dos direitos humanos em Burkina Faso resultou na falha estrutural do dever de proteger do Estado, causada por ele mesmo. É imprescindível o reconhecimento de seu erro perante a sociedade burquinense e sua reparação por meio de todas as ações necessárias para culpabilizar os responsáveis diretos.
Por mais que necessário, o reparo nunca será o bastante para suprir a ausência de comprometimento com a integridade da população. Seria o suficiente a consciência de que a marca de sangue na história do país pertence à mãos familiares?
Texto revisado por Nicholas Torsani e Alessandra Akimoto
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