Por Daniella Peixoto Pereira
Um dos aspectos culturais mais importantes de uma sociedade é a música, principal forma de construção de identidades na sociedade moderna. Todas as nacionalidades apresentam ricas características musicais próprias e estilos únicos, contudo, infelizmente, muitos gêneros não são conhecidos por grande parte da população devido ao grande poder de influência, soft power, de algumas nações sobre as outras. Dessa forma, se sobressai no universo musical as obras das grandes potências, enquanto as de países de menor influência internacional acabam sendo esquecidas ou ignoradas. Entretanto, isto não determina a inexistência de riqueza e grandiosidade no som desses outros Estados. Em relação à África como um todo, sua musicalidade é deveras desconhecida por muitos, apesar de sua grande diversidade e preciosidade. Assim, o objetivo do presente artigo é desmistificar algumas das consonâncias sonoras no Sahel e apresentar seus estilos e figuras marcantes nesse âmbito.
No que diz respeito ao Mali, este é muito mais do que um lugar passando por uma crise social e política, sendo também um país com um grande tesouro musical e patrimônios culturais. Para comprovar tal realidade, a rádio Afropop Worldwide, apresentado por Georges Collinet e distribuído pela Rádio Pública Internacional passou a explorar cada vez mais as variedades musicais da região do Sahel como um todo, com foco na República do Mali. Uma setlist interessante é denominada sahel sounds: modern music from mali, que é composta por diversos artistas, tendo como público alvo o pessoal mais jovem e contém pontuações interessantes dos comentaristas do programa. Para criar esse mix de diversidade, a rádio trabalhou em parceria com a gravadora Sahel Sounds. Ademais, é essencial exaltar o Blues como estilo musical de grande sucesso na região, em especial o músico Ali Farka Touré, considerado uma lenda responsável pelo reconhecimento internacional do blues do deserto do Mali. Há diversos outros cantores importantes, muitos deles estão presentes no Mali Blues, documentário que aborda, além das questões culturais, a importância da música para a construção de identidade no país, abordando também a situação política sobre como os islamistas radicais são uma ameaça aos músicos locais.
Por sua vez, na Eritreia, a música tem um papel vital na vida da população, principalmente ao analisar a história do país, pois, durante os 30 anos de luta por sua independência da Etiópia, era a música que mobilizava as pessoas, se transformando, inclusive, em uma importante ferramenta para inspirar os jovens e recrutá-los para a guerra, e, com a tão esperada chegada da paz em 1991, se transformou na trilha sonora dessa nação emergente. Dessa forma, é explicável a grande mistura de estilos no país, que varia desde músicas políticas sobre o sofrimento da guerra, até o pop, folk, funk e músicas tradicionais de suas 9 etnias predominantes. Sobre figuras marcantes, a primeira estrela do país foi uma mulher chamada Tsehaytu Beraki,conhecida como mãe da alma da Eritréia. Desde os 8 anos ela esteve em contato com o mundo musical, tocando em bares o seu kikar, violão tradicional local. Além de cantora e compositora, era também ativista e dançarina, e, mesmo tendo fugido para o Sudão e em seguida para a Holanda durante a guerra (onde permaneceu até sua morte em 2018, com 79 anos) ela segue sendo um ícone popular no país.
Fonte: Madote
Assim como a Eritreia, a Etiópia também passou por um período conturbado marcado por guerras e também por uma ditadura que durou 17 anos, o que impactou a música e cultura do Estado, principalmente devido ao toque de recolher instaurado durante esses anos autoritários, que tornava inviável a vida noturna do povo etíope, além da censura às letras de diversos sons que poderiam difamar ou desrespeitar o governo. Com o fim dessa era de repressão, a música passou a ser onipresente na região, principal na capital, Addis Ababa. No país, a tradição predomina inclusive no estilo musical, o que fica evidenciado pelo repertório dos cantores, visto que as maiores vozes da região expressam tanto um estilo moderno quanto um tradicional,ambos possuindo ouvintes em alta demanda.
Os anos 60 e 70 ficaram conhecidos como a “Era Dourada”, graças ao boom de gravações da época. Dos muitos sucessos da década de ouro, destacam-se os nomes Tlahoun Gessesse e Mahmoud Ahmed. O primeiro cantor ficou conhecido por seu apelido, “A voz” (“The Voice” em inglês) e por arrecadar dinheiro para combater a fome durante a década de 1970, fator que o fez ganhar a empatia da população e a afeição da nação, levando-o a conquistar o prêmio da Belas Artes da Etiópia e Prêmio de Confiança em Massa da mídia (Ethiopian Fine Art and Mass Media Prize Trust, em inglês), um grande e honorável êxito na vida de um artista da Etiópia. Já o segundo artista é adepto do estilo Gurage, e fez muito sucesso nacional durante os anos 70 e 80 e, durante a década de 90, bombou sob os holofotes internacionais, principalmente europeus e americanos. Começou a vida com uma infância pobre, até que a oportunidade bateu à porta e pôde demonstrar seus talentos nos palcos, a princípio como integrante das bandas, mas logo iniciou carreira solo. Seu sucesso foi tanto que ele chegou a ganhar o Prêmio Mundial de Música da BBC, em 2007.
Fonte: Eth biography Fonte: wikimedia commons
Fica evidente que as questões culturais de um país são grandemente influenciadas por sua história e acontecimentos políticos e sociais. Também fica claro a riqueza abundante de alguns países do Sahel, com atores reconhecidos a nível internacional. Infelizmente, essa cultura é ignorada por muitos: a indústria africana de música é, muitas vezes, vendida para países europeus ou para os Estados Unidos. A própria Afropop Worldwide, por exemplo, tem como compositores de sua mesa diretora mais da metade das empresas estadunidenses. Muitos artistas só conseguem ser minimamente reconhecidos no âmbito internacional após se venderem para gravadoras estrangeiras e, mesmo assim, suas músicas são ofuscadas pelas composições nacionais dessa região e, dessa forma, acabam não chegando aos ouvidos da maioria da população, que, acostumadas com seu ciclo habitual de músicas, prefere manter-se com o que já conhecem ao invés de buscar novas experiências neste universo. O desconhecido pode muitas vezes surpreender.
Texto revisado por Alessandra Taiko Kopittke Akimoto
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