Por Luis Otávio Nascimento
Coronel Ismaël Wague, no centro, o porta voz do grupo de soldados que se identificam como o Comitê Nacional para a Salvação do Povo. Fonte: Arouna Sissoko/Associated Press
Militares autointitulados Comitê para a Salvação Popular, em 18 de agosto de 2020, depuseram o presidente eleito Boubacar Keita e dissolveram a Assembleia Nacional. Com amplo apoio popular e religioso, o grupo celebrou o aniversário de 60 anos da independência maliana e, como presente, deu o sexto golpe militar que assola o país.
Eleito em 2013, o presidente deposto é fruto de um golpe militar que tomou o país no ano anterior. No contexto da Primavera Árabe, com revoluções populares por toda a região, a contestação do poder impulsionou os militares locais, que realizaram um golpe e tomaram o poder. A partir da Líbia, movimentos extremistas – entre eles o DAESH, autointitulado Estado Islâmico - infiltraram em território maliano e ameaçaram, ainda mais, o pouco estável ambiente político do país, que culminou no golpe.
Com a promessa de gerar estabilidade social, econômica e política, Keita foi eleito e aplacou um acordo de paz com os Tuaregues, que capitaneavam um dos movimentos separatistas, mas deixou de fora outros tantos. O equilíbrio pode ter sido alcançado com um ator, contudo,outros também fazem parte do jogo político da região e não alcançaram nenhum benefício com o acordo. Era claro que os conflitos não iriam cessar, pelo contrário, se acirrariam.
Reeleito em 2018, Keita manteve o poder e mais cinco anos de mandato. Sob fortes acusações de fraudes na eleição, seu governo encontrou dificuldades para governar desde então. Nas eleições de abril de 2020 o cenário foi muito parecido. No entanto, dessa vez, a Suprema Corte maliana teceu decisão favorável ao presidente.
A população maliana tomou as ruas contra o governo após as eleições, no que ficou conhecido como o Movimento de 5 de Junho. Dentre as reivindicações populares estavam a tomada de medida em relação aos problemas crônicos que assolam o jovem país desde a sua independência, e que estão diretamente ligados com o passado colonial, como a fome e a falta de segurança institucional.
A violência e o grande derramamento de sangue, que ceifam a vida de milhares de malianos anualmente ao norte do país, se mostram como variáveis centrais no movimento popular. Grupos extremistas islâmicos reivindicam para si parte do território, e agem com extrema violência contra aqueles que se opõem, como a própria população local. O grupo com ação mais proeminente na região talvez seja os Tuaregues, com o qual Keita assinou um acordo de paz em 2015.
Esse e outros movimentos separatistas bebem diretamente da fonte da era colonial, uma vez que a divisão entre os países colonizadores foi feita arbitrariamente e sem o entendimento das complexas diferenças culturais e étnicas regionais. Quando independentes, movimentos antes fortemente reprimidos, agora conseguem se mostrar fortes frente a um Estado recém emancipado e incapaz de se impor a esses grupos.
Como resultado, parte da população busca sobreviver indo para o sul do país, a região menos instável, mas que, assim como a região norte, enfrenta problemas tais como a fome. Esse problema endêmico, que assola o país desde a sua independência, por exemplo, faz com que aproximadamente 15% das crianças do país sofram com fome aguda.
Eleito para solucionar esses problemas, o governo de Keita, na visão dos insurgentes, aprofundou eles, além de trazer ainda mais corrupção para a política nacional, com doses de nepotismo por todo o governo. Apoiados nesses problemas e reivindicações, os golpistas tomaram o poder com amplo apoio popular. Contudo, ainda que contem com apoio doméstico popular, não enfrentam a mesma realidade internacionalmente.
A União Africana e a Comunidade Econômica dos Estados Africanos Ocidentais (CEEAO) denunciaram esse golpe e chamaram por sanções. Nesse sentido, a CEEAO impôs tais penalidades, com a interrupção do fluxo de comércio e financeiro entre os Estados membros e Mali, além do fechamento das fronteiras com os países vizinhos. Entretanto, as fronteiras são extremamente porosas e difíceis de serem vigiadas por Estados que passam por muitos dos mesmos problemas enfrentados pelo Mali. Portanto, tais medidas são muito mais uma demonstração da insatisfação com o ocorrido do que ações efetivas.
Por parte de seu ex colonizador, a França, que tem mais de 5.000 militares na região do Sahel, a condenação foi veementemente redigida e chama por eleições imediatas. Ainda que a população francesa não apoie essa intervenção, por vezes apelidada pelos franceses como “o nosso Afeganistão”, o Estado francês vê como necessidade a manutenção da presença militar na região. Os Estados Unidos foram na mesma linha, ao repudiarem o golpe, e retiraram a ajuda militar que forneciam ao país.
Os golpistas estabeleceram um governo de transição até as recém convocadas eleições, que ocorrerão em 2022. Até lá, um militar da reserva e ex-ministro da defesa será o responsável por comandar o país como presidente, com um participante ativo do golpe na posição de vice. Eles terão a árdua tarefa de lidar com problemas crônicos do estado maliano e com um isolamento internacional gigantesco.
A verdade é que com problemas endémicos como os enfrentados pela população maliana, um novo governo fruto de um golpe militar, e ainda faceando um grande distanciamento de outros atores externos, dificilmente a realidade doméstica irá mudar, pelo menos não para melhor. A tendência é que os desafios se aprofundem.
A solução da violência crônica, de movimentos separatistas, da fome e da corrupção passam diretamente por uma ação conjunta e coordenada pelos países da região, associada com a colaboração da comunidade internacional. Grupos como os Tuaregues não possuem uma identificação clara com o país que os governa, mas sim com o território por eles ocupado. Assim como diversos outros grupos separatistas da região, a desistência ou mudança de território não são opções.
Os desafios malianos são os problemas da grande maioria dos jovens países da região. O isolamento do Mali somente agravará os conflitos e a fome. Com ligações orgânicas entre os países do Sahel, que compartilham um mesmo passado colonial, por exemplo, o que possivelmente ocorrerá é o espalhamento do sentimento de insatisfação entre os países vizinhos. Nesse sentido a ação estatal mais incisiva, como forma de reprimir qualquer movimento que se mostre com as mesmas feições do ocorrido em Bamako, podem ocorrer. Em uma região que sofre com a violência estatal e de grupos extremistas, esse não é um prognóstico positivo. Presidentes da Costa do Marfim e da Guiné, vizinhos malianos, já demonstraram preocupações com a possível contaminação em seus países dos sentimentos golpistas que retiraram Keita do poder no país ao norte.
Texto revisado por Nicholas Torsani
Coronel Ismaël Wague, no centro, o porta voz do grupo de soldados que se identificam como o Comitê Nacional para a Salvação do Povo. Fonte: Arouna Sissoko/Associated Press
Militares autointitulados Comitê para a Salvação Popular, em 18 de agosto de 2020, depuseram o presidente eleito Boubacar Keita e dissolveram a Assembleia Nacional. Com amplo apoio popular e religioso, o grupo celebrou o aniversário de 60 anos da independência maliana e, como presente, deu o sexto golpe militar que assola o país.
Eleito em 2013, o presidente deposto é fruto de um golpe militar que tomou o país no ano anterior. No contexto da Primavera Árabe, com revoluções populares por toda a região, a contestação do poder impulsionou os militares locais, que realizaram um golpe e tomaram o poder. A partir da Líbia, movimentos extremistas – entre eles o DAESH, autointitulado Estado Islâmico - infiltraram em território maliano e ameaçaram, ainda mais, o pouco estável ambiente político do país, que culminou no golpe.
Com a promessa de gerar estabilidade social, econômica e política, Keita foi eleito e aplacou um acordo de paz com os Tuaregues, que capitaneavam um dos movimentos separatistas, mas deixou de fora outros tantos. O equilíbrio pode ter sido alcançado com um ator, contudo,outros também fazem parte do jogo político da região e não alcançaram nenhum benefício com o acordo. Era claro que os conflitos não iriam cessar, pelo contrário, se acirrariam.
Reeleito em 2018, Keita manteve o poder e mais cinco anos de mandato. Sob fortes acusações de fraudes na eleição, seu governo encontrou dificuldades para governar desde então. Nas eleições de abril de 2020 o cenário foi muito parecido. No entanto, dessa vez, a Suprema Corte maliana teceu decisão favorável ao presidente.
A população maliana tomou as ruas contra o governo após as eleições, no que ficou conhecido como o Movimento de 5 de Junho. Dentre as reivindicações populares estavam a tomada de medida em relação aos problemas crônicos que assolam o jovem país desde a sua independência, e que estão diretamente ligados com o passado colonial, como a fome e a falta de segurança institucional.
A violência e o grande derramamento de sangue, que ceifam a vida de milhares de malianos anualmente ao norte do país, se mostram como variáveis centrais no movimento popular. Grupos extremistas islâmicos reivindicam para si parte do território, e agem com extrema violência contra aqueles que se opõem, como a própria população local. O grupo com ação mais proeminente na região talvez seja os Tuaregues, com o qual Keita assinou um acordo de paz em 2015.
Esse e outros movimentos separatistas bebem diretamente da fonte da era colonial, uma vez que a divisão entre os países colonizadores foi feita arbitrariamente e sem o entendimento das complexas diferenças culturais e étnicas regionais. Quando independentes, movimentos antes fortemente reprimidos, agora conseguem se mostrar fortes frente a um Estado recém emancipado e incapaz de se impor a esses grupos.
Como resultado, parte da população busca sobreviver indo para o sul do país, a região menos instável, mas que, assim como a região norte, enfrenta problemas tais como a fome. Esse problema endêmico, que assola o país desde a sua independência, por exemplo, faz com que aproximadamente 15% das crianças do país sofram com fome aguda.
Eleito para solucionar esses problemas, o governo de Keita, na visão dos insurgentes, aprofundou eles, além de trazer ainda mais corrupção para a política nacional, com doses de nepotismo por todo o governo. Apoiados nesses problemas e reivindicações, os golpistas tomaram o poder com amplo apoio popular. Contudo, ainda que contem com apoio doméstico popular, não enfrentam a mesma realidade internacionalmente.
A União Africana e a Comunidade Econômica dos Estados Africanos Ocidentais (CEEAO) denunciaram esse golpe e chamaram por sanções. Nesse sentido, a CEEAO impôs tais penalidades, com a interrupção do fluxo de comércio e financeiro entre os Estados membros e Mali, além do fechamento das fronteiras com os países vizinhos. Entretanto, as fronteiras são extremamente porosas e difíceis de serem vigiadas por Estados que passam por muitos dos mesmos problemas enfrentados pelo Mali. Portanto, tais medidas são muito mais uma demonstração da insatisfação com o ocorrido do que ações efetivas.
Por parte de seu ex colonizador, a França, que tem mais de 5.000 militares na região do Sahel, a condenação foi veementemente redigida e chama por eleições imediatas. Ainda que a população francesa não apoie essa intervenção, por vezes apelidada pelos franceses como “o nosso Afeganistão”, o Estado francês vê como necessidade a manutenção da presença militar na região. Os Estados Unidos foram na mesma linha, ao repudiarem o golpe, e retiraram a ajuda militar que forneciam ao país.
Os golpistas estabeleceram um governo de transição até as recém convocadas eleições, que ocorrerão em 2022. Até lá, um militar da reserva e ex-ministro da defesa será o responsável por comandar o país como presidente, com um participante ativo do golpe na posição de vice. Eles terão a árdua tarefa de lidar com problemas crônicos do estado maliano e com um isolamento internacional gigantesco.
A verdade é que com problemas endémicos como os enfrentados pela população maliana, um novo governo fruto de um golpe militar, e ainda faceando um grande distanciamento de outros atores externos, dificilmente a realidade doméstica irá mudar, pelo menos não para melhor. A tendência é que os desafios se aprofundem.
A solução da violência crônica, de movimentos separatistas, da fome e da corrupção passam diretamente por uma ação conjunta e coordenada pelos países da região, associada com a colaboração da comunidade internacional. Grupos como os Tuaregues não possuem uma identificação clara com o país que os governa, mas sim com o território por eles ocupado. Assim como diversos outros grupos separatistas da região, a desistência ou mudança de território não são opções.
Os desafios malianos são os problemas da grande maioria dos jovens países da região. O isolamento do Mali somente agravará os conflitos e a fome. Com ligações orgânicas entre os países do Sahel, que compartilham um mesmo passado colonial, por exemplo, o que possivelmente ocorrerá é o espalhamento do sentimento de insatisfação entre os países vizinhos. Nesse sentido a ação estatal mais incisiva, como forma de reprimir qualquer movimento que se mostre com as mesmas feições do ocorrido em Bamako, podem ocorrer. Em uma região que sofre com a violência estatal e de grupos extremistas, esse não é um prognóstico positivo. Presidentes da Costa do Marfim e da Guiné, vizinhos malianos, já demonstraram preocupações com a possível contaminação em seus países dos sentimentos golpistas que retiraram Keita do poder no país ao norte.
Texto revisado por Nicholas Torsani
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