Por Pedro Lopes Bouças
Apesar da enorme conveniência que a era digital proporcionou para o aprendizado não só de idiomas como também de tantas outras coisas, muitos dos que tem vontade de aprender uma língua nova mal conseguem tirar proveito da tecnologia. Quiçá a torrente de recursos de estudo que a rede oferece os afogue. Uns acabam enganados por aplicativos que prometem fluência rápida e barata e se desiludem; outros simplesmente preferem procurar uma escola de idiomas, esperando ser alimentados do puro néctar do conhecimento linguístico. Estes últimos, pelo menos, acabam aprendendo algo, mas não sem ter gasto muito tempo e dinheiro. Não que as escolas de idioma não sejam úteis. O problema é achar que ou o professor ou a escola é o responsável pelo aprendizado de seus estudantes. Quer dizer, acreditar que tudo que há de ser aprendido alguém vá ensinar. Um professor ou tutor pode sim ser de grande ajuda, mas este deve ser um dentre uma dezena de recursos de aprendizado disponíveis, e deve ser usado com eficiência, já que o tempo com o professor é escasso. Na escola de idiomas, é dado um caminho claro e único a se seguir para atingir a proficiência. Geralmente há módulos que vão desde ignorante total até grão-mestre, podendo levar dezenas de anos (e dezenas de milhares de reais) para subir essa escada. Se o aluno comparecer às aulas diligentemente, alguma hora há de progredir e aprender alguma coisa. Contudo, é claro que essa não é a via mais eficiente, de maior custo-benefício e mais condizente com o aprendizado de múltiplas línguas. O poliglotismo requer uma abordagem distinta dessa, a começar pela tomada de controle do processo de aprendizado, a saber, a percepção de que você mesmo tem a capacidade de aprender qualquer idioma que quiser e pode determinar o próprio caminho para tal.
Por outro lado, um dos maiores benefícios de estar numa escola de idiomas é justamente ter alguém que diga: “é isso que você deve fazer agora, e daqui uma semana aquilo”. Afinal, é essencial ter um norte. A preparação de um plano de estudos é um dos passos mais importantes na longa jornada do aprendizado de um idioma para quem deseja encarar esse desafio por si mesmo. O planejamento visa tornar as horas de trabalho o mais eficiente possível, contribuir com a habituação ao estudo, evitar não ter o que estudar e tornar as conquistas mais palpáveis dividindo o objetivo maior em pedaços menores.
Tão logo saibamos o idioma que queremos aprender e detenhamos vontade genuína de fazê-lo, devemos refletir sobre o quanto do nosso tempo hemos de conceder ao estudo cada dia. A regularidade, em primeiro lugar, é um fator importantíssimo tanto para a aquisição em si quanto para a construção do hábito. A ausência ou presença deste é um dos maiores determinantes do êxito no aprendizado. Dessa forma, é desejável estudar todos os dias o idioma objetivado, separando determinadas horas específicas do dia para tal. Ainda que uma sessão de estudos razoável seja de uma hora diária, é claro que temos que considerar as obrigações e as outras atividades de vida. Quando alguém começa a estudar uma língua, o dia não passa a ter 25 horas. Por isso, há de se avaliar qual outra atividade diária será cessada. Alguns têm muito tempo de sobra, e podem cortar inutilidades, mas principalmente aqueles que cuidam dos filhos infantes e dos pais idosos, trabalham fora e formam-se profissionalmente precisam encontrar um espaço na agenda corrida para o estudo de idiomas. Para ter tranquilidade nos estudos, há de se separar um período específico do dia exclusivo ao estudo, no qual todas as outras coisas são deixadas de lado. Não caiamos na tentação de fazer múltiplas atividades ao mesmo tempo nesse período [1]. Embora a dedicação intensa de pelo menos uma hora por dia seja o ideal, é possível sim aprender estudando um pouco a cada dia. Nesse caso, a chave é não quebrar o hábito, além de estabelecer um número mínimo de minutos (digamos 20 minutos) e segui-lo.
Seguramente, o principal fator impedidor do avanço num idioma é a motivação. Durante a longa jornada de aprendizado intermitentemente há picos e depressões na vontade de seguir em frente, seja por conta de acontecimentos externos da vida humana, seja pelo sentimento de que o progresso está sendo lento. Nesses momentos de baixa, o que impede o autodidata de chutar o pau da barraca muitas vezes é o hábito. Com efeito, criar bons hábitos é de suma importância. Aristóteles mesmo já dizia que as virtudes são hábitos.
Dito isso, não é de grande utilidade planejar em detalhes aquilo que só poderá vir anos a frente. O interessante é dividir o objetivo final em passos menores e detalhar os que estão mais próximos. Tomemos por exemplo um estudante que tem o objetivo final de atingir o nível C1 em chinês dali 2 anos partindo do zero. Ele pode começar por atingir o nível A2 em 6 meses e depois nível B1 em mais 4 meses, detalhando o que fará nesse primeiro período e se preocupando com chegar no nível B1 depois. Vale lembrar que antes mesmo de embarcar nesse primeiro estágio é primordial que o estudante já tenha seus motivos determinados do porquê quer aprender esse idioma e uma noção cultural e linguística mínima acerca dele. Sem essa noção simplesmente não é possível planejar nada, principalmente no que tange à escala temporal do processo de aprendizagem. Por exemplo, para alguém que quer aprender mandarim e nunca ouviu falar nos quatro tons nem viu um sinograma é mais aconselhável que comece por abrir um livro básico qualquer de chinês numa livraria ou biblioteca, conversar com um chinês ou ler em linha algum artigo sobre a língua e cultura da China.
Obviamente também não pode faltar no planejamento a escolha dos materiais e recursos a serem usados. Estes variam de acordo com o nível de proficiência que o estudante se encontra. O que falarei adiante se aplica ao iniciante. Em primeiro lugar, todos devem ter um bom dicionário (com pelo menos algumas dezenas de milhares de verbetes) do idioma objetivado para seu idioma nativo ou para um outro que já conheça e vice-versa. Cada dicionário tem seu forte, então o ideal é encontrar uma combinação de dicionários em linha e em papel, mas isso ocorrerá naturalmente mais tarde. De início, um dicionário é o suficiente, seja em linha ou em papel. Mas o que faz um dicionário ser bom? Ele deve ter no mínimo informações sobre a classe gramatical de cada palavra, múltiplas traduções para cada entrada das palavras mais comuns na língua estrangeira e algumas frases ou colocações de exemplo. É desejável que inclua a pronúncia das palavras em alfabeto fonético internacional (IPA) igualmente. Atenção: os milhares de “tradutores” facilmente acessíveis na rede não são dicionários. Além de serem pobres em conteúdo, não é raro apresentarem informações incompletas, inadequadas e até mesmo equivocadas. O dicionário deve ser usado sem pudor todas as vezes que o estudante encontra uma palavra desconhecida, ou quando uma palavra em sua língua nativa cuja tradução desconhece lhe vem à mente. Além do dicionário, deve adquirir um livro texto para estudantes autodidatas que inclua diálogos, textos, listas de vocabulário, explicações gramaticais e um CD (tais quais os da série Assimil). Esses materiais são ideais para o estudo autodidata, mas as vezes há programas em linha em um formato diferente que podem substituí-los. Uma vantagem dos livros em papel é que eles não requerem o pagamento mensal de taxas de assinatura. Deve-se prestar atenção para não adquirir por engano aqueles livros feitos exclusivamente para uso em sala de aula. Como referência, é sempre bom possuir na estante uma gramática da língua. Hoje em dia felizmente há textos de referência gramatical que descrevem tanto a norma culta quanto a linguagem coloquial, que também deve ser aprendida (na realidade para alguns propósitos é até mais importante estudá-la do que estudar a norma culta). Além desses, são essenciais materiais para o estudo específico dos sons da língua (e que tenham arquivos de áudio junto), abundantes na rede para as línguas mais populares. É primordial aprender a pronunciar o idioma corretamente logo no início dos estudos, principalmente quando se trata de idiomas com um inventário de sons muito diferente da língua nativa do estudante. Melhor ainda é estudar a fonética e fonologia básica antes mesmo de estudar qualquer outro aspecto do idioma. Em chinês, por exemplo, é nada menos do que impossível de se fazer entender, e isso mesmo que se conheça a gramática profundamente, se cada sílaba não for pronunciada no tom correto [2]. Erros de pronúncia são mais difíceis de consertar quanto mais são levados adiante. Por fim, é sempre bom juntar uma miscelânea de materiais em linha: sítios, arquivos, canais do Youtube. Os mecanismos de busca também são grandes aliados para procurar palavras, principalmente os que têm função de imagens. Em geral, quanto mais material há, melhor.
Posto tudo isso acerca do planejamento, talvez a impressão seja de que o plano deve ser seguido com uma rigidez militar, mas não é bem assim. A única utilidade do plano é auxiliar nos estudos, e é só para isso que ele existe, não havendo nele um fim em si mesmo. Há até mesmo aqueles que conseguem estudar com eficiência planejando minimamente. Além de ser inútil planejar em excesso (ou planejar sem nada realizar), o automatismo advindo da rigidez no planejamento ainda pode acabar tirando o aspecto lúdico de aprender algo novo. Em suma, devemos estar sempre alertas de maneira a não degenerar a nenhum de dois extremos: nem encarar o trabalho intelectual sem seriedade como uma distração, nem o tornar uma tarefa automática a ser concluída periodicamente sem proporcionar um mínimo divertimento. Devemos procurar o equilíbrio entre a satisfação momentânea de estudar e a disciplina que requer o devenir do objetivo de longo prazo (estabelecido previamente, mas que não por isso não deva ser atualizado caso necessário). Por um lado, aquele que se diverte muito estudando, descobrindo novos padrões e ligando-os aos dos idiomas que já conhece, muitas vezes tende a explorar simultaneamente vários idiomas, o que compromete seu objetivo de atingir a proficiência em um idioma em particular. Por outro lado, há também os que focam mais no objetivo final e sofrem se não seguir o plano à risca. Estes correm mais o risco de cair no automatismo e não se divertir enquanto aprendem, o que pode acabar solapando sua motivação para prosseguir nos estudos no futuro.
Ainda que seja extremamente útil preparar um plano de ação antes de começar os estudos e segui-lo com certa sistematização, devemos evitar a dureza e tolerar um certo grau de flexibilidade. O importante é não ter a mentalidade do tudo ou nada: “já que hoje me apareceu essa pendência que me ocupou tempo extra, vou deixar para estudar tudo amanhã”. Ora, se não é possível estudar os 30 minutos desejados de hoje, estudar 15 já mitiga o prejuízo. O futuro é imprevisível, e como já dizia o sábio Padre Sertillanges, devemos primeiro cumprir nossas funções como homens e mulheres e depois dedicarmo-nos aos estudos. Assim sendo, devemos dispensar o sentimento de culpa quando não conseguirmos atingir o número de horas para cada sessão de estudo postos no plano.
No mais, segui-lo à risca sem pensar em aproveitar o processo de aprendizado, que é tão divertido quanto é demorado, é lastimável. Esse é um erro que cometem os que tratam o idioma como nada mais do que um instrumento para poder interagir com a cultura de um povo pelo qual se interessam. Ao mesmo tempo que tratar o estudo regular como um dever cria o hábito e permite chegar à proficiência, o fato de ser um dever não quer dizer que não possa ser divertido. A questão é encontrar o equilíbrio entre esses dois extremos, nunca deixando de se fascinar com a linguagem e a forma com que opera nem abandonando a ambição de um dia se tornar capaz de usar o idioma a seu bel-prazer.
Enfim, o começo de tudo é pôr a si mesmo no comando da nave. O planejamento é o mapa que a conduzirá aos territórios longínquos da fluência e do poliglotismo. O hábito, por sua vez, é a experiência do navegador em se esquivar do recife ou manter a nau intacta ao passar de uma tempestade. Um bom navegador se diverte ao abarcar em terras desconhecidas que avista ao longo do caminho, mas nunca se esquece do destino final, em vista do qual a própria jornada foi financiada. Sejamos, pois, como esse bom navegador.
[1] Escutar materiais de áudio enquanto se realiza uma outra atividade banal é uma ótima estratégia de aprendizado, dita passiva. Porém, deve ser usada em conjunto com o estudo ativo, ao qual se faz referência aqui. Pode ser pensada como um extra, já que o importante é estudar ativamente todos os dias.
[2] O mandarim bem como muitas outras línguas da família sino-tibetana possuem a peculiaridade dos tons. Cada sílaba em mandarim tem um dentre 4 tons: alto, descendente, ascendente ou baixo (também há um tom neutro). Estes remetem à variação da frequência ao longo da pronúncia de uma sílaba.
Texto revisado por Alessandra Akimoto
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