Por Gabriela Schneider Barreto
O tratamento desigual entre indivíduos constitui uma problemática que permeia e assola há séculos toda a conjuntura das relações sociais. A devida atenção acerca dessa pauta é recente, já que em diversos países, senão todos, havia uma maior flexibilidade e menor restrição determinadas por legislações acerca de condutas de caráter discriminatório, que vigoraram até poucos anos. Além disso, o discurso de ódio proferido contra indivíduos de determinadas raças se revelava notoriamente de maneira abrupta e descarada em comparação à forma como se revela na atualidade. Gradualmente, essas condutas e discursos passaram a ser rejeitados e identificados como uma abominação da humanidade, bem como passaram a ser tratados como repudiáveis e indignos de serem acomodados em sistemas jurídicos. Assim, ordenamentos jurídicos passaram a proteger e tutelar a igualdade social e a verificar a ilicitude a quaisquer atos discriminatórios e cruéis.
É de conhecimento público que a escravidão e exposição a condições deploráveis são de jure proibidas por violar tantos aspectos que são, por natureza, inerentes à pessoa e à sua dignidade e liberdade, compreendidos como bens individuais invioláveis. No entanto, em diversas realidades – ainda que isso não seja exposto e não tenha a devida notoriedade – a escravidão ainda se faz muito presente em algumas relações de trabalho, o que é comumente visto em determinadas nações africanas, especialmente naquelas que pertencem ao cinturão do Sahel.
É certo que a influência do neocolonialismo e neoimperialismo (que, diga-se de passagem, teve um impacto negativo em grande escala) se encontra enraizada nas relações sociais de regiões tão frágeis como tal e que denotam a enorme desarmonia e injustiça. Há uma enorme diversidade étnica e religiosa na região do Sahel e um dos grupos que habita essa região é o dos tuaregue, expressivo no Mali, no Níger e na Mauritânia.No século XX, a dinâmica social desse povo era determinada pela pureza da raça. Os tuaregues distinguiam os “koual” dos demais, sendo aqueles compreendidos como uma etnia “branca” (ainda que os fenótipos fossem contrários ao sentido literal da palavra), dada a influência e até mesmo descendência de colonialistas franceses sobre essa parcela do povo. Os tuaregues “shaggaran” compreendidos como uma etnia negra e “inferior” nivelada à ausência de status e pertencimento não admitiriam que fossem dominados pelos “koual”, haja vista que a percepção sobre a parcela supostamente superior era amplamente negativa. Os “shaggaran” se autodeterminavam como homens intitulados de liberdade e que não se sujeitariam a qualquer relação de subordinação (Lecocq, 2005). Dessa maneira, os tuaregues “brancos” foram subvertidos a um status inferior, pois ainda que fossem vinculados diretamente aos franceses, eram tratados como mero objeto de exploração.
Ao estudarmos a realidade a fundo e as suas peculiaridades, é perceptível que essas questões não foram inteiramente solucionadas e inúmeros indivíduos continuam sendo vítimas de uma situação tão deplorável. Apesar de a questão de relações escravocratas ter se dado por formalmente encerrada no papel, os tuaregues permaneceram vítimas de um modelo escravista até a atualidade. A existência de uma delimitação com sanção jurídica adequada e com a devida penalização para condutas que tenham como objeto a violação da dignidade humana por submissão de terceiros a situações análogas à escravidão (como o trabalho forçado aplicado como forma de punição, a escravidão sexual e tráfico infantil) é evidenciada como ineficiente e insuficiente, pois, materialmente, ainda é notório que o sofrimento humano constitui a realidade de muitos em regiões como a do Sahel. Não se entende toda essa problemática apenas como algo inadmissível por constituir tamanha violação de direitos individuais. Afinal, ela é também causadora de tremendo espanto pelo fato de que, mesmo com tamanho alarde feito sobre as situações presentes, as relações sociais permanecem estagnadas desta maneira, sem intervenções para que tamanho infortúnio seja posto em xeque.
Revisado por Pedro Lopes Bouças
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