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Leitura no aprendizado de idiomas

Por Pedro Lopes Bouças


Uma das invenções humanas mais espetaculares é a escrita. É por causa dela que podemos gravar ad vitam aeternam tudo que é falado e que se esvai instantaneamente. A boca de um homem quiçá pode atingir os ouvidos de dezenas aqui e agora, mas a escrita permite ao homem compartilhar seus pensamentos com milhões, tanto com o mudo presente quanto com o de milhares de anos no futuro. A escrita, contudo, não é meramente uma extensão da linguagem falada, e traz consigo novas formas de conceber a língua. Sem ela, não há perspectiva de  construção dos conhecimentos filosófico, matemático e científico. Mesmo assim, são muitos ainda hoje os que desprezam a leitura, a erudição, o saber e a introspecção, incluso uma parte estudantes de idiomas. Outros ainda não desprezam a leitura totalmente, mas só vêem valor nela quando serve para um propósito prático imediato. É uma mentalidade de dar pena, que retarda ou até impossibilita o aprendizado de idiomas, já que a leitura se faz essencial para atingir a maestria de uma língua estrangeira, principalmente no que tange a aquisição e fixação de vocabulário e de padrões gramaticais.

Não que seja dispensável o aprendizado holístico das quatro competências: leitura, escrita, fala e escuta, mas a leitura como cada uma das outras merece ser analisada isoladamente. Na base, as quatro competências se distinguem da seguinte maneira: duas remetem à compreensão, passividade, entrada, e duas ao fazer compreender, atividade, saída; duas remetem à linguagem escrita e duas à falada. Uma vez que cada uma das quatro competências é exercitada de maneira distinta, e por isso a capacidade de um estudante depende também de fatores externos ao estudo de idioma estrangeiro, é possível se destacar em uma e tropeçar nas outras, ou tropeçar em uma e se destacar na outras. Cada estudante tende por inclinação natural a uma ou outra. Contudo, é evidente que as quatro competências estão interrelacionadas, e o treino numa acarreta também avanço nas outras. 

Grande parte da aquisição de um segundo idioma consiste na fixação e internalização de vocabulário e padrões gramaticais [1], mas há dois níveis nesse processo: o primeiro, passivo, e o segundo, ativo. As competências de leitura e escuta constroem o conhecimento passivo e por isso são anteriores às competências de escrita e fala, que fazem uso do conhecimento ativo. 

O processo de aquisição de um vocábulo ou estrutura gramatical ocorre mais ou menos da seguinte forma. Primeiro, escutando ou lendo atentamente identificamos a expressão nova, a isolamos do fluxo da fala se estivermos escutando, e conhecemos seu significado pela primeira vez. Podemos anotá-la numa lista de vocabulário ou então criar um cartão eletrônico para revisá-la depois se for oportuno. De qualquer forma, dali a um tempo a encontramos novamente em outro contexto. Se não lembrarmos seu significado podemos reaprendê-lo, mas se o lembramos a expressão se fortifica na nossa mente. Quanto maior o número de contextos nos quais a encontramos, tanto mais firmemente se fixa a expressão em nossa memória, e tanto mais rapidamente a compreendemos ao encará-la. Nas primeiras vezes que se depara com uma palavra, é comum que o fluxo da leitura diminua para que se possa buscá-la na memória, mas à medida que a palavra é encontrada diversas vezes, esse processo de busca se encurta até ser praticamente instantâneo. Alguns até dizem que não aprendemos um idioma, mas nos acostumamos a ele. Bom, até aqui temos o conhecimento passivo da expressão, mas e o ativo? 

Infelizmente, ter só o conhecimento passivo de uma expressão não é suficiente para sair empregando-a de maneira natural e eloquente. Para poder reavê-la da memória com rapidez e empregá-la com naturalidade numa conversa é necessário prática. Analogamente ao que descrito acima, quanto mais praticamos a fala (ou a escrita), mais prontamente pescamos na memória aquela expressão que melhor encaixa no contexto em questão, e cujo conhecimento passivo já possuímos. Obviamente, pois é impossível dizer ou escrever uma expressão que nunca foi lida ou escutada, a não ser quando se cunha novos termos naturalmente a partir dos morfemas [2] disponíveis de uma língua. 

O número de expressões pertencentes ao nosso domínio de conhecimento passivo será sempre maior do que o do conhecimento ativo, e isso é válido também para nossa língua nativa. Essa afirmação pode parecer uma obviedade, mas pasmem: para alguns não é. Muitos vendedores de produtos de idiomas prometem a fluência a partir de abordagens com enfoque exclusivo na fala, o que é um contrassenso, e com isso ganham rios de dinheiro. É claro que a fala é importante, e para alguns é o único objetivo para aprenderem um idioma, mas para poder falar algo, no mínimo, antes se deve escutar. E vou além: mesmo para aqueles que pouco se interessam por livros, é interessante incorporar a leitura nos estudos, pois é com ela que se adquire o maior número de palavras novas. Com um vocabulário reduzido, dificilmente se terá qualquer conversa de teor minimamente substancial. De fato, obtemos vocabulário escutando materiais em áudio e em conversações com falantes do idioma que queremos aprender. Porém, existem aquelas palavras e expressões que, apesar de não serem arcaicas, raramente aparecem em contextos de fala. A maioria dos falantes cultos do idioma conhece as palavras desse grupo a que me refiro, e por isso são essenciais para o domínio pleno do idioma e para aquelas situações em que se deseja descrever um conceito, objeto ou ideia com especificidade e detalhe. Assim, para progredir na expansão do vocabulário, a leitura se torna indispensável a partir de um certo estágio. 

Nos estágios iniciais do aprendizado, as possibilidades de leitura ficam restritas às lições dos livros-textos de nível básico. É bom escolher um livro-texto que tenha CD incluso, para também escutar o texto antes e depois de ler. Esse tipo de leitura é deveras maçante, mas é essencial para chegar aos estágios superiores, onde podemos separar a leitura em três categorias: extensiva, semi-extensiva e intensiva. Em qual das três um texto entrará não depende só do nível geral no idioma do estudante, mas também da familiaridade com o tópico e do nível de dificuldade do próprio texto.

A leitura intensiva é aquela feita com o auxílio contínuo de um dicionário. O estudante procura no dicionário e anota toda palavra desconhecida, assim que encontrada. É uma leitura um pouco árdua, compatível com textos curtos e dos quais o leitor conhece uma quantia relativamente baixa de palavras, em torno de 75% a 80%, digamos. Se queremos tirar alguma informação específica de um texto, igualmente devemos praticar a leitura intensiva. Para descobrir a porcentagem de palavras já sabidas em um texto, basta tomar uma página aleatória, contar o número total de palavras e o número de palavras desconhecidas, e fazer a divisão desses dois números. Apesar da internet oferecer uma enorme quantidade de material para leitura e oferecer mais conveniência que o papel, a vantagem deste, em especial para a leitura intensiva, é proporcionar mais interação entre o leitor e o texto. É recomendável rabiscar o papel, marcar relações entre palavras, casos gramaticais, pronúncia, indicar palavras novas, palavras conhecidas, palavras-chave.  

A leitura semiextensiva, por sua vez, é apropriada para livros dos quais o leitor conhece mais que aproximadamente 95% do vocabulário, ou alternativamente livros em idiomas com um número significativo de cognatos com idiomas conhecidos. À medida que o estudante lê o texto, faz conjecturas sobre o significado de cada palavra desconhecida, baseado no contexto do tópico da passagem, nas expressões ao redor e na classe gramatical que deve ocupar aquele espaço, e marca com um símbolo a palavra no livro. Há de se resistir a urgência de procurá-las no dicionário, para não comprometer a fluidez da leitura. Terminado o capítulo, seção ou período escolhido, o estudante volta ao começo e passa uma a uma pelas palavras marcadas. Aí deve pesquisá-las no dicionário, encontrar o significado e tradução apropriados para aquela passagem a anotá-las num caderno para revisar depois. É importante anotar não só o significado, mas também outras informações relevantes ao uso da palavra, que variam segundo o idioma e a classe gramática. Se for um verbo, deve anotar sempre as preposições que o verbo rege e se o verbo é pronominal, intransitivo ou transitivo. Se for um substantivo deve-se anotar o gênero e a forma plural se for o caso. Se for um adjetivo, à que tipo de substantivo se pode aplicá-lo, e assim por diante. É proveitoso depois de um tempo, voltar à lista de palavras anotadas e fazer uma revisão rápida. Opcionalmente, aqui pode-se exercitar a escrita concomitantemente, elaborando pequenos textos ao fim de cada capítulo sobre o que foi lido. É interessante se esforçar para expressar o que quer dizer, sem buscar ajuda no dicionário. Findo o textinho, se deve corrigi-lo e aí com auxílio do dicionário reescrever o que estiver insatisfatório.   

Quanto à leitura extensiva, esta é feita sem o auxílio de dicionário, e requer mais de 98% de familiaridade lexical. Para toda palavra desconhecida, se deve conjecturar um significado, como o leitor normalmente faz com um livro escrito na língua nativa. Como há uma tendência em qualquer autor de empregar várias vezes os mesmos termos, a conjectura vai se ajustando ao encontrar a expressão em diversos contextos até eventualmente o significado se tornar claro. 

Nas leituras extensiva e semiextensiva, é preferível que o texto escolhido seja um livro, e ainda um livro cujo tema seja genuinamente interessante para o leitor. Dispor-se a ler um texto numa língua estrangeira já requer alto grau de determinação; se o tópico for maçante e desinteressante ao leitor a probabilidade que este concluirá a leitura é ínfima. No debutar dos estudos, é necessário prosseguir apesar dos textos desinteressantes escritos especificamente para estudantes, mas estes pelo menos são curtos, muitas vezes menores que uma página. Como é mais fácil fazer um camelo passar por um buraco de agulha que se forçar a ler centenas de páginas de algo totalmente desinteressante, no começo deve-se tomar cuidado para escolher um tópico que agrade de verdade.  

Além disso, a leitura serve também como um ótimo motivador para o aprendizado. Quanto mais se lê num idioma, maior a vontade de continuar lendo, quiçá de um dia ler os grandes autores daquela cultura. A motivação de eventualmente ser capaz de ler grandes obras nos ajuda a passar pelos estágios mais baixos da jornada do aprendizado.

Com tudo que foi dito, espero que haja uma mudança em relação a como os estudantes de idioma vêem a leitura. De forma alguma ela deve ser a única habilidade a ser praticada: todas as quatro habilidades devem ser incluídas nos estudos, mas com o advento de métodos que relegam ao esquecimento a leitura, promovendo abordagens com enfoque exclusivo na fala, pelo menos uma voz havia de vir a sua defesa. 

[1] Por padrões gramaticais entendem-se fórmulas próprias da língua, nas quais encaixamos palavras ou expressões numa determinada forma como argumentos. Em português temos: tão A quanto B (comparação), no qual A é um adjetivo ou advérbio e B um substantivo. Em alemão, por exemplo, o equivalente seria: so A wie B.

[2] O morfema é a unidade mínima formadora de palavras. Por exemplo, a palavra “antropocentrismo” é formada por três morfemas: “antropo” (homem, do grego), “centro” e “-ismo” (sufixo que indica uma tendência de opinião por um determinado grupo).   


Texto revisado por Nicholas Torsani


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