Artigo de opinião por Nicholas Torsani
O gigante da Eurásia definitivamente vive tempos distantes do planejado, mesmo após a grande depressão sofrida após a queda de seu império soviético. No ocaso da Guerra Fria, padeceu sob instabilidade econômica galopante e fragmentação política. Na falta de um norte, a piora dos índices sociais era realidade constante e a emergência de um líder autoritário questão de tempo. Daí surgiu a figura do ex-chefe do serviço secreto soviético Vladimir Putin, que assumiu a presidência interina em 1999 após a renúncia mais que tardia de Boris Iéltsin.
Em um país fragmentado – haja vista o episódio checheno – e que ansiava pelo retorno aos bons tempos de glória internacional, seu discurso caiu como uma luva. Por um lado, direcionava altas críticas ao ocidente desenvolvido através de uma retórica antidemocrática e altamente nacionalista; por outro lado, fazia com que o país retomasse o crescimento, quase decuplicando (10 vezes) o PIB e o PIB per capita entre os anos de 1999 e 2008. Assim, angariou ainda mais popularidade, apesar da concentração de renda e repressão emergentes, exemplificadas nos episódios de projeção de poder sobre a Geórgia e na centralização do poder no Kremlin. Ademais, juntamente aos ascensionários Brasil, China, Índia e África do Sul, fez parte dos BRICS, impulsionando um novo momento internacional para Moscou, que ganhou mais jogo político no tabuleiro global.
Na década subsequente à crise de 2008, que temporariamente fez com que diminuísse, em uma irônica contraposição, os índices de Gini e do PIB, o quadro de projeção de poder continuou a se intensificar. Tanto regionalmente, quanto para fora de seus domínios, a Rússia capitaneada por Putin se postulou como mais forte e influente, incorporando territórios e se posicionando em méritos internacionais assertivamente. No caso da Ucrânia, anexou a península da Criméia como se estivesse tirando o doce da boca de uma criança, e sentiu os efeitos angariados, impostos em uma tentativa do ocidente de penalizar a Rússia contemporânea. Ledo engano. Afinal, quem poderia mexer com Putin e seus correligionários, que mandam e desmandam na corrupta e fragmentada Mãe Rússia? Os efeitos do poderio bélico exuberante e excedente também foram sentidos há pouco mais de 2 mil quilômetros de Sebastopol (capital da Criméia), agora na destruída Síria de Assad, histórica parceira dos russos. Ao ceder o porto de Tartus por quase 50 anos ao Kremlin em troca do apoio militar e logístico em sua guerra civil, a Síria manteve seu regime e colaborou para que algo pior não ocorresse nas linhas fronteiriças de seu parceiro eurasiano. O porto devolveu o acesso russo ao Mediterrâneo, águas que não eram alcançadas por eles desde a URSS, parte do plano de Moscou de se inserir maritimamente, facilitando sua patrulha e comércio. Esse plano já foi uma das grandes motivações para a incorporação da Crimeia, ao obter o acesso a um porto que não congelava (Sebastopol), e com o de Tartus a presença russa se mostra ainda mais destacada. Além disso, é evidente que um dos maiores temores da Rússia é o separatismo e a emergência do fundamentalismo islâmico nas regiões fronteiriças. Conter os ânimos nessas partes é um desafio, como evidencia o presente conflito entre as ex-repúblicas soviéticas da Armênia e do Azerbaijão.
O que vemos hoje é uma Rússia que não consegue se desvencilhar do passado. A qualquer custo, o país faz uso do seu arsenal bélico, em grande parte herdado da União Soviética e de sua estrutura portentosa, ou de sua vasta reserva de hidrocarbonetos, que sustentam majoritariamente o consumo europeu. Ela não recorre à sua indústria, ou ao seu potencial diplomático, ou mesmo à sua indústria de soft power. Para ter alguma margem de negociação, Moscou recorrentemente se acode no seu potencial geográfico e no que herdou belicosamente. Adentrando os méritos geográficos, por sinal, durante muito tempo acreditou-se que a Rússia obtinha o posicionamento perfeito para um país, contemplando o que era chamado pelo geopolítico Mackinder como Heartland, ou a Área Pivotal do mundo. O país que conseguisse controlar com êxito a região que se estendia do que hoje se compreende pela Rússia europeia até o Extremo Oriente Siberiano, passando pelo Irã e pela Ásia Central, controlaria o globo. Ainda que Mackinder tenha eventualmente desmentido a própria teoria, a ideia se fixou no ideário político russo, fazendo o país agir como se fosse efetivamente o detentor da Heartland.
Mapa da Teoria Geopolítica de Mackinder. Fonte: The geographical pivot of history (1904)
Apesar de externamente se portar como potência ao estilo realista e belicoso – segundo a correspondente teoria das Relações Internacionais –, internamente a nação se corrói ao passar por tempos sombrios. Contemplando um decrescimento populacional anual desde 1992, mesmo com algumas exceções recentes, à semelhança de 2013, o país denotou uma média de decréscimo anual de 0,2%, segundo o instituto demográfico russo Rosstat. Além disso, com taxas de fecundidade que desde o fim da URSS estavam abaixo da reposição natural, de 2,1 filhos por mulher (FPM), no fim do século passado o país chegou a registrar uma média de 1,25 FPM, o que é mais que insuficiente para um país que almeja retornar ao pódio do jogo político internacional. Mesmo com o crescimento desses números mais recentemente, já apresentando uma taxa de 1,75 FPM no triênio 2015-2017 impulsionados pela política de Putin, o país ainda apresenta uma alta taxa de emigração e uma baixa atração de imigrantes, que são cruciais para o governo ao menos manter a população estável.
Outro fator interno elementar são os jovens das gerações Y (nascidos entre 1981 e 1996) e Z (nascidos entre 1997 e 2012). Caracterizados por serem o grupo mais insatisfeito com o regime de Putin, eles ao mesmo tempo são os que mais se afastam da política interna e se posicionam mais à favor do ocidente, disparando críticas ao Kremlin por sua postura autoritária e ultrapassada, como na nova cena do Trap/Rap russo. Além disso, se reforça o fato deles serem uma parcela populacional significativamente menor, impossibilitando que se mobilizem efetivamente para transformar o sistema, o que remete ao ciclo vicioso que a política russa enfrenta. Uma política que mantém o mesmo grupo político (via manipulação ou não) há 21 anos, e pouco apresenta forças para mudar o quadro, ao mesmo passo que os seus autocratas não conseguem consolidar a posição de potência pela própria insuficiência da nação, esfacelada e vivendo das migalhas da grandiosidade já vivida.
Mais ainda, os efeitos econômicos sofridos internamente pelos russos evidenciam uma enorme fragilidade social, apoiada sobre um governo que está mais preocupado em se projetar à semelhança do que foi anteriormente, do que em resolver os problemas iminentes enfrentados por sua população. Afinal, em um país que incentiva empresas a reduzirem os níveis salariais para empregar mais pessoas, ao mesmo tempo enfrentando mais de 50% das mortes entre a População Economicamente Ativa em virtude do alcoolismo, a última preocupação do governo é com relação ao bem estar de seu povo. Isso ainda considerando a alta evasão de cérebros do país, e dos gastos militares excessivos do Kremlin, que contabilizaram 3,9% do PIB de 2019, somente demonstram o real foco da nação.
Em vista do que foi supracitado, se nota o confuso e obscuro rumo que o país está tomando, que cada vez mais tem de sustentar sua posição de Rei no cenário internacional, em um momento que o tabuleiro está ebulindo e suas facetas mais controversas sendo expostas, ao passo que enfrenta dentro de si, e das suas fronteiras, graves antíteses e potenciais problemas futuros. Cabe ao Kremlin ter o bom senso de que o país necessita mudar os rumos para continuar crescendo sustentavelmente e talvez visar retornar ao posto de potência global, ao contrário do que é observado. Em uma Rússia que mais se sustenta através de suas redes de dependência internacionais do que pela sua solidez e capacidade de transformação internas, qualquer vento mais forte que seja soprado será catastrófico para o futuro nacional.
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